domingo, 26 de fevereiro de 2012

Atraso no desenvolvimento da fala - nas palavras de uma especialista

A Dra. Elisabete Giusti é fonoaudióloga em São Paulo, especialista em linguagem infantil formada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Doutora em Linguística também pela Universidade de São Paulo. Entre outras coisas, ela mantém um site maravilhoso, cheio de informações sobre aquisição e desenvolvimento da linguagem e atraso no desenvolvimento da fala, que pode ser acessado aqui

Fiquei muito feliz quando a Dra. Elisabete aceitou o meu convite para compartilhar um pouco de sua rica experiência com os leitores do blog. O post que publiquei em 2011 sobre atraso no desenvolvimento da fala é o mais lido de ‘Filhos Bilíngues’, portanto o assunto é de interesse para muitas famílias. A meu ver a mensagem mais importante para os pais aqui é que bilinguismo em si não causa atraso no desenvolvimento da fala.  

Abaixo o excelente texto escrito pela Dra. Elisabete para os leitores de ‘Filhos Bilíngues’.   


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Atraso no desenvolvimento da linguagem oral e bilinguismo
Por Elisabete Giusti

Muitas famílias vivenciam a experiência de serem bilíngues. Alguns autores até defendem a idéia de que hoje em dia, o bilinguismo não seja mais uma escolha da família, mas sim uma necessidade. Com a globalização é muito comum casais de diferentes nacionalidades constituírem uma família e quando chega um bebê, surgem algumas dúvidas, como por exemplo, que língua devemos falar com ele? A língua do papai, da mamãe ou apenas a língua do país de residência? Ou todas as línguas? Mas isso não irá confundí-lo?

Outra dúvida bastante frequente é: o bilinguismo não irá causar um atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem? Muitos pais até iniciam o ensino bilíngue, mas no primeiro sinal de “confusão” ou até mesmo “lentidão” no desenvolvimento da fala, cessam e passam a falar a mesma língua ensinada na escola, por exemplo.

Sobre o atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem, existem vários fatores que podem desencadeá-lo, como por exemplo, problemas auditivos (perdas auditivas), transtornos globais no desenvolvimento (quando a criança apresenta, além da dificuldade na fala, outras dificuldades, como pobre coordenação motora, dificuldade para resolver problemas práticos, não sabe brincar adequadamente, não compreende bem as instruções ou situações do dia-a-dia, não interage adequadamente, etc.). Problemas neurológicos e/ou genéticos também podem causar um atraso no desenvolvimento da fala. Além das causas orgânicas, existem também as causas ambientais como, por exemplo, a falta de estímulos adequados.

Existe também uma condição que pode justificar o atraso na fala, um quadro comum e que afeta muitas crianças: o Distúrbio Específico de Linguagem (Specific Language Impairment, SLI). Nestes casos, a criança é aparentemente normal, não possui nenhum problema, já realizou exames com resultados normais, no entanto, ela não consegue desenvolver adequadamente a linguagem oral. Atualmente acredita-se que o Distúrbio Específico de Linguagem ocorre devido a um funcionamento alterado em áreas responsáveis pelo processamento da linguagem no cérebro, é um desvio funcional e mesmo os exames mais convencionais para o estudo do cérebro como ressonância magnética ou tomografia, podem não detectar essas alterações.

De uma forma geral, crianças com Distúrbio Específico de Linguagem podem apresentar: atraso no aparecimento das primeiras palavras, dificuldade para combinar as palavras para formar frases, dificuldade na produção dos sons da fala (fala de difícil compreensão, com muitas trocas e omissões dos sons), dificuldade para aprender novas palavras (vocabulário restrito), dificuldade para relatar fatos, dificuldade para aprender as regras gramaticais, dificuldade para compreender piadas, duplo-sentido, linguagem figurada, dificuldade para contar uma história. Pode acontecer de outras pessoas da família ter dificuldades semelhantes.

Especificamente sobre o bilinguismo não existem evidências científicas que confirmem que seja uma causa de atraso no desenvolvimento da linguagem. O que pode acontecer é que a criança possui uma predisposição para apresentar um transtorno de linguagem (um Distúrbio Específico, por exemplo) e por isso, aparecem várias dificuldades, que podem ser erroneamente relacionadas ao bilinguismo. 

Crianças com transtornos específicos no desenvolvimento da linguagem apresentarão dificuldades linguísticas independentemente de quantas e de quais línguas são faladas em casa ou na escola.

Um outro aspecto que também é importante é que para aprender uma língua, a criança precisa de estímulos, de modelos e de um ambiente linguisticamente rico. Os pais devem conversar bastante e naturalmente com seus filhos, devem valorizar suas iniciativas de comunicação, devem ensinar novas palavras, devem brincar, ler muitas histórias, cantar, ver filmes, enfim devem valorizar a comunicação de uma forma ampla e prazerosa.

Se houver ansiedade, cobrança excessiva, insegurança na relação dos pais com a criança, isso poderá desencadear algumas dificuldades, inclusive um atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem. O aprendizado de uma língua também deve fazer sentido para a criança, ou seja, aprender uma língua não é apenas conhecer palavras, frases ou “falar como o papai ou a mamãe”.  Uma língua deve ser ensinada com todos os seus valores e cultura. Deve ser uma ferramenta para novas descobertas, trocas e vivências significativas.

“A principal ferramenta que a criança precisa para adquirir a linguagem é VOCÊ!”  (K. Apel, PhD, First Three Years)

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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Multiculturalismo: a experiência de quem teve uma criação bilíngue

Através da Andreia Moroni (vide post A experiência de voltar a morar no Brasilconheci a paulista Daniela Damiati, que gentilmente aceitou meu convite para escrever um relato para Filhos Bilíngues sobre sua interessante experiência linguística e cultural. O texto segue abaixo, e provavelmente vai proporcionar uma luz a muitos pais criando filhos bilíngues pelo mundo afora. 

Obrigada, Daniela, por compartilhar a sua história.

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Olá!

Eu sou a Daniela e vim aqui contar minha história para vocês. Falo não da perspectiva dos pais ou dos estudiosos do bilinguismo, mas sim do ponto de vista de quem teve uma criação bilíngüe.

Quando eu tinha dois anos, meu pai ganhou uma bolsa de estudos para fazer seu doutorado nos Estados Unidos. De imediato, nos mudamos para lá, onde ficamos durante cinco anos.

Já em terras norte-americanas, meus pais falavam entre si e comigo somente o português. Dessa maneira, nunca perdi o contato com minha língua materna. No entanto, logo comecei a ir à escolinha, onde aprendi a falar o inglês com bastante fluência.

Em pouco tempo, eu já falava e compreendia bem as duas línguas, mas teve início uma situação peculiar: meus pais falavam comigo em português, mas eu preferia responder quase sempre em inglês. Minha mãe relata que isto, inclusive, ajudou-a no aprendizado do inglês, já que ela não tinha visto de trabalho e ficava muito tempo em casa, sem contato próximo com falantes nativos.

Eu também costumava corrigir a pronuncia do meu pai, pois notava diferenças entre a fala dele (com sotaque) e a fala de um americano.

Lembro que quando meus pais se juntavam a seus amigos brasileiros, no caso de alguma confraternização, eu tinha dificuldades para entender o que falavam, pois conversavam muito rápido, mas eu gostava de escutá-los. As músicas brasileiras também estavam sempre presentes em nosso cotidiano, o que foi muito importante para que eu criasse um vinculo afetivo com a língua.

Este período da infância, fora do país, foi intenso, pois estudei numa escola com crianças de várias partes do mundo, filhos também de universitários estrangeiros que moravam nos Estados Unidos. Como aprendi o inglês muito cedo, me integrava muito bem com as crianças norte-americanas, pois falávamos o mesmo nível de inglês. Ao mesmo tempo, interagia bem com meninos e meninas de outros países que estavam aprendendo a língua. Essa escola era interessante porque todos os alunos tinham aulas regulares, mas as crianças estrangeiras, recém-chegadas ao colégio, recebiam reforço para aprender o inglês de modo mais rápido, para não perderem o conteúdo das aulas. Era um ambiente muito rico, com crianças das mais diversas etnias, religiões e continentes, o que tornava a diversidade uma parte trivial do nosso dia-a-dia.

Os cinco anos que passei nos Estados Unidos foram muito bons. Saí de lá alfabetizada em inglês, com uma fluência enorme na língua, mas sem nunca perder o vinculo com a minha língua materna, o português.

Ao retornarmos ao Brasil, meu pai queria falar comigo em inglês, visando manter nossa fluência, mas a iniciativa não me parecia natural, já que, até então, ele sempre havia falado comigo em português.  Então recusei a situação e passei a responder a ele em português também.

No interior de São Paulo, onde voltamos a morar assim que chegamos ao Brasil, era difícil encontrar alguém, naquela época (meados dos anos 1980), que tivesse fluência em outra língua. Nesse sentido, uma criança que falava inglês fluente e o português de modo razoável, mas com sotaque, era um grande chamativo. Todos queriam que eu dissesse coisas em inglês, mas me incomodava ser o centro das atenções. Nesse sentido, preferi me dedicar a aperfeiçoar o português o máximo que conseguisse.

Em pouco tempo já não tinha mais dificuldade para falar ou escrever em português e perdi até mesmo o sotaque do inglês. Meu único choque ao retornar ao Brasil foi com a escola. Como ela era particular, havia quase que uma unanimidade de alunos brancos, o que contrastava muito com a diversidade da minha escola anterior. Foi aí que entendi o que significava o preconceito.

Nessa escola tinha aulas semanais de inglês, mas tudo era muito básico, o que não me ajudava a manter o inglês adquirido. No entanto, tendo em vista a larga influência cultural americana, por meio de músicas, filmes e séries de TV, consegui manter o contato com a língua e nunca tive dificuldades com ela. Muito pelo contrário: mesmo hoje, passados mais de 20 anos desta experiência, eu ainda tenho fluência ao comunicar-me em inglês e sempre fui bem nas vezes em que fiz os exames de proficiência da língua inglesa.

Como esta experiência vivida ao longo da infância despertou minha atenção para outras culturas, durante adolescência quis fazer um novo intercâmbio cultural. Acabei optando por ir para a Bélgica, um país multicultural com três línguas oficiais, onde morei durante um ano. Lá, fiquei hospedada na região de Flandres e aprendi mais um idioma, o flamengo, que nada mais é do que o holandês com o sotaque e expressões típicas belgas. Certamente o fato de já ser fluente no inglês e português, ajudou-me muitíssimo no aprendizado de uma terceira língua, então fui uma das estudantes brasileiras que aprendeu mais rápido e com mais facilidade o holandês. Apesar de ter perdido um pouco do vocabulário, continuo me comunicando muito bem no holandês, mesmo agora, quando já se passaram 14 anos desta experiência.

Acredito também que não foi coincidência que, ao retornar ao Brasil, tenha escolhido a área de comunicação como opção no vestibular. Nos meus estudos na universidade, lembro de um texto que falava sobre como nossa visão de mundo é pautada pela língua que falamos. Isto me fez lembrar do que eu já tinha percebido intuitivamente nas minhas experiências fora do país: línguas anglo-saxãs como holandês e o inglês têm muitas palavras para exprimir situações e detalhar objetos. E não é à toa que a cultura deles é bastante organizada. Línguas latinas como o português, por sua vez, apresentam mais palavras que exprimem sentimentos. E, em regra, somos conhecidos por sermos muito emotivos. Claro que estas são generalizações, mas, de fato, sinto que quanto mais línguas você aprende, mais você amplia sua visão de mundo, bem como estimula a sensibilidade.

E por isto acredito que todo filho(a) deve ser estimulado a aprender a língua-mãe de seus respectivos pais. Isto só fará dele um ser humano com uma visão mais rica do mundo e das diversas culturas na qual ele está inserido.


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